Que Bem Cheira A Maresia
19.12.04
Uma Lição De Vida
Enquanto nós nos revoltávamos com o que te estava a acontecer, tu respondias-nos com Uma Lição De Vida.Faz hoje um mês que partiste e só agora quando vejo o João entrar lá em casa sem ti é que vou percebendo que será assim sempre. A casa, os lugares, tudo continua inundado pela tua presença, pela tua voz e pela tua gargalhada, e mesmo quando a Bia vê o João chegar sozinho para as nossas noites de sábado e não te vê a ti e me diz; “Mãe, a Fatinha está no céu a rir-se para nós, não é mãe?”, eu não consigo segurar a lágrima que teimosamente se solta e sorrindo para os céus vejo-te de facto a sorrir.Foram muitos os momentos de dor e sofrimento que passaste por causa dessa maldita leucemia. Mas em Outubro, tu, nós, todos nós carregados de esperança, aguardávamos que chegasses do IPO com a notícia da cura tão esperada, e de malas feitas partíamos para mais um fim de semana em Vieira do Minho. Mas tu não chegaste, apenas a notícia de que algo não estava bem, o cateter não pôde ser retirado, mais exames, mais dor, mais sofrimento. Chegaste-nos no sábado, revoltada pelo que mais uma vez tinhas que passar, mas ainda assim com a vontade de te juntares a nós, iludindo por momentos a dor. Lembro ainda, nós, todas juntas no quarto à tua volta, a mandarmos as nossas habituais bocas e a rirmos, e a tua cara ia-se transfigurando entre sorrisos e espasmos de dor, foi a última vez que estivemos juntas.Faz hoje um mês que o telefone tocou pela manhã e entre soluços de dor a noticia chegava. Mas hoje tal como há um mês atrás, não quero chorar, quero continuar a segurar o jornal nas mãos, ler a tua lição de vida e ao som do Bolero que pedias sempre, partilhá-la com este mundo de gente que me vai lendo.Um beijo Fátima , até logo….Mar Revolto
A dor tem de ser um intervalo breve entre manhãs de alegria - Fátima Calafate* Estou de novo no IPO.Venho para mais umas sessões de quimioterapia. Como costumo dizer às enfermeiras, que tão carinhosamente me tratam, “venho aqui, vocês dão-me uma coça e mandam-me para casa gemer”.E, quando regresso a casa, na verdade geme-me o corpo e a alma. Tenho dores. Fico insuportável, barafusto com todos pelo mínimo motivo, detesto olhar-me ao espelho, chego a ter pena de mim própria.A minha família aguenta pacientemente os meus humores, preocupa-se imenso comigo, pega em mim ao colo diariamente.É também nestas alturas que me informam das pessoas que perguntam por mim, dos telefonemas, das mensagens, das flores, dos livros, das cartas, dos postais, dos bilhetes, dos recados, que toda a gente me manda!Meu Deus, como se formou à minha volta um tão grande cordão humano, um espaço onde todos dizem ter-me incluído nas suas orações! Para me fazer rir, a minha irmã diz que “por falta de cunhas no Céu, tu não morres”.Como e quando poderei agradecer a toda a gente o carinho e o cuidado demonstrados? Um agradecimento público soa-me a missa de 7.° dia, e eu quero celebrar a vida! Por isso prefiro partilhar convosco a esperança que também sinto em superar este rio turbulento. A Dra. Luísa Viterbo, a médica que tão carinhosa e incansavelmente me trata no IPO, diz que estou curada, e que a cura precisa agora de ser confirmada com alguns tratamentos de consolidação. Não posso, pois, pensar na morte. Tenho que agarrar a Vida!Esta carta é uma forma de me comprometer com a Vida. De lhe dar o mesmo sentido que todos os que lutaram comigo lhe dão. As minhas amigas Midas e Lina dizem:“é bom voltar, a ver brilho no teu olhar”. Esse brilho, que é de confiança, exprime a gratidão a todos. À minha irmã que dispõe de cada minuto livre do seu tempo para estar comigo e dar-me injecções de ânimo nos momentos de incontida revolta. À sua colega, que não conheço, mas que me manda textos lindos que me fazem acreditar em dias melhores. Ao meu marido, que passa todas as tardes do meu internamento, à minha cabeceira, a amortecer as minhas resmunguices...Quero, com bom querer, lutar pela Vida. Isso já é viver intensamente! Devo este querer à minha família, aos meus amigos, aos meus colegas e alunos, ao IPO, a todos os que me têm no seu pensamento. E aos meus pais, a quem este tempo tem feito sofrer tanto, numa altura da vida em que mereciam tranquilidade!Quero agradecer a Deus a lição de humildade e de amor ao próximo que me tem dado!Mas, sobretudo, a todos que, como eu, possam estar debilitados e em sofrimento, importa-me deixar-lhes uma mensagem de confiança e de esperança: a Vida vale tudo, até o sofrimento.A energia positiva dos amigos fez-me descobrir que, dentro de nós, existem forças desconhecidas que tudo transformam, que podem fazer dos dias de dor intervalos breves nas manhãs de alegria!(*) Professora de Inglês na Escola Dr. Flávio Gonçalves
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19.12.04 ::
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